quinta-feira, 16 de junho de 2011

Encenação da identidade nas fronteiras da cidade: A figura do Capitão Nascimento nos discursos testemunhal e ficcional.

Numa base como no trabalho de Marco Pólo em “Cidades invisíveis”, os Capitães do Batalhão da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, André Batista e Rodrigo Pimentel atribuem seu ponto de vista ao olhar o mundo do outro, ficando assim, numa posição extremamente favorável, e com total autoridade para apresentar ao ouvinte um panorama totalmente desconhecido da cidade. No caso do leitor, fica numa postura parecida com a de Kublai Khan, fazendo assim um mundo imaginativo tomar cor e moldes que antes não teriam sentido pelo não acesso às informações que esses “mundos” o teriam restringido, e confiando no seu diplomata, que nesse caso são agentes subalternos dentro da perspectiva de Estado.

O livro, recortado em dois pontos que estabelecem a relação entre os oficiais Rodrigo Pimentel e André Batista que num pacto de veracidade com o leitor, apresenta relações de cumplicidade ao mostrar como eram passadas as suas horas dedicadas ao seu espaço construído com um orgulho inestimável, moldando um grau de pertencimento extremamente compatível para um grupo fechado e estabelecido dentro de uma ideologia forte que ultrapassa qualquer tipo de obstáculo cultural, social e político. Junto com o antropólogo e especialista em segurança pública Luiz Eduardo Soares, formam um livro que obtém um sucesso demasiadamente extenso.

Num primeiro momento, os capitães apresentam relatos testemunhais que literariamente podem ser considerados pobres, com construções ruins, típicas de alguém que não teve um contato direto com uma literatura de ponta, enquanto o texto de Luis Eduardo Soares é altamente trabalhado no âmbito ficcional e literário, mostrando que tem experiência nessa forma de trabalho.

No campo da literatura testemunho, Beatriz Sarlo (SARLO: 2007) afirma que o discurso testemunho pode comprometer a interpretação da história, a formação de uma valorização da escrita de relatos testemunhais, considerada como uma nova literatura mostra formas de libertação de um padrão estético plantado com raízes firmes, dando formas de produção de voz para os grupos mais subalternos.

Estabelecendo e corroborando a descrição de um outro mundo, os Capitães fundavam o que era dito da periferia, coisa que não era uma verdade absoluta, logo que esses grupos marginais ordenavam uma série de formações que falavam por si, e ainda mostravam claramente influências desse meio em cima da obra. Segundo Edward Said: tais lugares, regiões, setores geográficos, como o “Oriente” e o “Ocidente”, são criados pelo homem. Assim, tanto quanto o próprio Ocidente, o Oriente é uma idéia que tem uma história e uma tradição de pensamento, um imaginário e um vocabulário que lhe deram realidade e presença no e para o Ocidente. As duas entidades geográficas, portanto, sustentam e, em certa medida, refletem uma à outra. (SAID: 2008, 31).

Com essa passagem de Said, percebemos que a periferia não está simplesmente ali, ela institui toda uma comunidade que tem voz própria e que não deveria ser representada por um terceiro elemento exterior, mas deixar que a própria periferia organize sua história e suas tradições, até nos modos de influência na Metrópole, em que se estabelecem uma zona de contato que Mary Louise Pratt denomina zona de contacto, e que ocorre o processo de transculturação, onde a autora conceitua como: para descrever como grupos subordinados ou marginais selecionam e inventam a partir de materiais a eles transmitidos por uma cultura dominante ou metropolitana (PRATT: 1999, 30).

Ordenando o trabalho nesse sentido, os capitães recontam literariamente esta história criando ficções de dêem conta de um determinado ambiente, utilizando diversas formas de arquivo e lembranças, mas não deixando que o mundo de lá se forme firme pelos padrões auto-etnográficos, ou seja, formas de representação própria em relação ao que o outro conta sobre seu determinado grupo, ideologia e postura (PRATT, 1999). No caso do estabelecimento de conceituação sobre o mundo do outro, onde ficaria a voz dos excluídos? Por isso essa preocupação em afirmar que a história contada por terceiros não estaria como verdade absoluta, por mais autoridade que eles tenham para falar desse mundo como alguém que entra, saí e conta histórias até mesmo coerentes.

A partir daí, o processo de mediação se torna evidente ao transportar o processo literário para as telas de cinema. Com José Padilha, respeitado documentarista no mundo cinematográfico mostra ao mundo que o assunto violência pública não estaria encerrado depois do documentário (“Ônibus 174”, 2002), e que uma obra baseada no relato de agente de ordem pública sobre seus cotidianos em operações poderia ser bem representada na figura de um herói, que mostrava tudo que a sociedade carioca precisava no momento, alguém que pudesse mostrar que estava no controle não importa o que acontecesse, mostrava ética e coerência não ligando para a postura dos seus governantes e suas politicagens, e é bem nesse contexto social que aparece a figura do Capitão Nascimento.

E nesse processo montado em cima de relatos estabelecidos num mundo do outro, esses mediadores relatam o mundo fora das classes favorecidas que nunca tiveram contato com essas relações de comportamento, conhecendo uma pequena parte do que acontece na sociedade carioca.

Intermediando essa transposição do Literário para o cinema, Padilha mostra também que nem sempre essa figura do herói corresponde nossas expectativas, e que a dicotomia na personalidade do principal personagem da trama é evidente ao que se representa passar por algumas leis. Padilha, num processo de interferência na obra dos capitães nos mostra isso, uma figura que passa das barreiras do estado em muitos momentos não sendo um pretexto para corrupção como na maior parte da polícia convencional, não o BOPE, esse grupo fechado e ilhado contra os maus exemplos, essa unidade não se deixa contaminar pelo que vem de fora, para o cumprimento do seu dever, não só o personagem, mas o grupo como um todo, fazendo assim com que o espírito de corpo desconstrua a figura de instituição. Esse exemplo é muitas vezes evidenciado no filme, como na cena em que pratica atos de tortura, e ao se elevarem mais do que o Estado, principalmente quando esses querem tirar o poder que por eles lhe são de direito. Na cena do enterro do Aspirante Neto, A figura do Capitão Nascimento chega até o local do sepultamento e sobrepõe a Bandeira do BOPE à bandeira do Brasil, fazendo ali transparecer que as armas nacionais estão em segundo plano, formando assim uma espécie de irmandade inabalável, fazendo um contraponto com o livro, podemos retirar do relato “Brizola” um plano para matar o então governador do Estado do Rio de Janeiro por restringir algumas funções do grupo: - Se o governador é antilei, se impede o cumprimento da lei, se bloqueia a luta contra o crime, se não deixa a polícia agir, se amarra nossas mãos...

Além disso, a lógica da guerra está bem implantada na seita que é esse grupo fechado, que tem por base e argumento principal a lógica da guerra, dentro de um pertencimento inimaginável. Tendo a própria bandeira, próprio símbolo, desvinculando de diversas formas de quem deveria ser o superior.

E nesse âmbito de excelência, nem mesmo “as maçãs podres da árvore” são argumentos para tais tipos de falcatruas comuns dentro da polícia convencional, até mesmo um membro que não segue os padrões estabelecidos por esse grupo, são perdoados, no relato “Justiça domiciliar” um dos membros do BOPE envolvido com corrupção é morto, mas para não manchar a imagem da excelência, moldam a figura desse membro como um herói morto em combate para que sua glória, e principalmente a imagem do Batalhão não fosse manchada.

Dentro desse contexto, a figura do Capitão Nascimento, que é uma figura subjetiva no trânsito entre os dois mundos, faz uma tradução de linguagem dentro da encenação que a recepção da imprensa e da população é intensa nessa mudança do foco da voz.

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