quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Encenação da identidade nas fronteiras da cidade: A figura do Capitão Nascimento nos discursos testemunhal e ficcional!

Produto de um grupo subalterno, o testemunho se projeta como voz da alteridade em processo de negociação com segmentos hegemônicos. Geralmente escrito a partir de um pacto de veracidade estabelecido com o leitor mas não de todo avesso aos recursos ficcionais, pode representar uma oportunidade de dramatizar para públicos mais amplos as guerras que se travam no corpo da cidade, opondo diferentes grupos e territórios. Elite da tropa, livro escrito por dois oficiais da PM carioca, André Batista e Rodrigo Pimentel, em parceria com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, representa um claro exemplo de uma forma literária em processo de transição, situando-se na primeira parte (escrita por Batista e Pimentel) dentro dos pressupostos do pacto de veracidade e na segunda parte (escrita por Luiz Eduardo Soares) dentro do pacto ficcional. O livro, escrito a seis mãos por sujeitos que não estão em situação de horizontalidade, já nos colocaria interessantes questões como, p. ex., de quem é livro ou em que ordem devem aparecer os créditos de autoria. Mas neste momento o que nos interessa para este trabalho é a produtividade da figura cheia de nuanças do capitão/capitães do BOPE (do cotidiano de homens simples a brutalidade radical que se manifesta no cenário de guerra civil que passa a viver a cidade) ao ser traduzida para a imagem em movimento nas telas de cinema. Na fronteira entre o testemunho e a autoficção, a primeira parte do livro escrita pelos dois capitães do BOPE concede talvez pela primeira vez na cultura brasileira legitimidade ao discurso de integrantes das forças da ordem. Provavelmente mais que as belas páginas de Luiz Eduardo Soares onde o ficcional se sobrepõe ao registro do real (e mesmo quando isto não ocorre a realidade apresentada é aquela que está mais ou menos próxima do mundo do leitor), os testemunho das incursões da elite das forças de segurança do Estado ao outro lado da “cidade partida” atraiu a atenção de leitores em todos o Brasil, logo encabeçando a lista dos mais vendidos na rubrica “não-ficção’ e despertou a atenção do documentarista José Padilha (Ônibus 174, 2002). Diretor que em seu primeiro longa-metragem reconstituiu o episódio trágico que ficou marcado na memória da violência da cidade e foi acompanhado por milhares de espectadores durante horas, Padilha sabe que o recorte o real encontrado nestes episódios iniciais de Elite da tropa, embora carente de um tratamento estético mais aprimorado, pode conquistar um enorme público para a versão da obra levada às telas. Os episódios baseados na rotina dos policiais, representados pela própria voz destes sujeitos que sempre chegaram ao público leitor através da representação da imprensa, trazem um olhar que produz um enorme eco em um tipo de público que, posicionado do lado de cá da fronteira, está ávido por representações da realidade característica de outros contextos que não o seu. Personagens oriundos de camadas baixas ou médias baixas da sociedade, oficiais que se converterão na versão fílmica na figura do famoso Capitão Nascimento carecem de um mediador do mundo intelectual que possa introduzi-los no mundo das letras mas são eles também mediadores do mergulho do leitor;espectador no lado escuro da realidade, estão em trânsito entre os dois mundos, não só porque são figuras que cruzam a fronteira cotidianamente para cumprir suas missões e mas porque atuam numa zona de contato na qual dialogam os dois universos da cidade e trazem informações do mundo do Outro.

(Resumo do meu trabalho apresentado na Jornada de Iniciação Científica UFRJ)

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